Postado em: 11/10/2019

Artigo - Farinha do mesmo saco!

 

na midia o popular 11 10 19

Confira o texto completo do artigo do presidente da Ahpaceg, Haikal Helou, publicado no jornal O Popular no dia 11/10/19

 

Farinha do mesmo saco!

 

O ano de 2003 estava apenas começando e já prometia ser repleto de emoções. Comemoraríamos o primeiro aniversário do meu primogênito, uma guerra no Iraque parecia inevitável com todos temendo o quê poderia se tornar a terceira guerra mundial e a Unimed Goiânia tinha decidido que, a partir daquele ano, novos cooperados só entrariam através de concurso. A ideia do concurso não me preocupava, toda a vida adulta tinha sido assim: faculdade, pós-graduação, validação de diploma nos EUA, residência médica. Porém, havia um número grande de colegas disputando as mesmas vagas e a perspectiva de não conseguir entrar gerava, sim, ansiedade. Naquela época, era inimaginável se desenvolver na profissão sem estar na Unimed. Ela era o nosso escudo contra a exploração do trabalho médico, nos trazendo pacientes, nos pagando em dia com valores justos, nos dando um senso de pertencimento.

Infelizmente, circunstâncias da vida foram me afastando do consultório e centro cirúrgico e me aproximando da gestão do único negócio da minha família, um hospital. Relutei muito no início, tinha me preparado a vida inteira para ser o que eu era, um cirurgião geral, operar, salvar vidas, e agora estava metido em reuniões, discussões financeiras, fornecedores e operadoras. Buscando entender esse mundo, me aproximei de outros médicos e donos de hospitais que passavam pela mesma situação e viviam as mesmas angústias e aí a vida deu uma guinada.

Reuniões passam a ser o nosso trabalho. Agora, o assunto é sinistralidade, diárias e taxas, protocolos, indicadores. Não mais bisturi, pinça e tesoura. Ato contínuo, a forma como enxergamos o mundo muda. O sofrimento é grande, sonho constantemente com o centro cirúrgico, começo a pensar que não estou mais salvando vidas ou ajudando as pessoas, até me dar conta que com a boa gestão hospitalar, tornando os hospitais mais seguros, criando e adotando classificações, núcleos de segurança, protocolos de boas práticas e indicadores salvaria muito mais vidas do que poderia como cirurgião.

Muda também a visão dos colegas sobre o médico gestor. Param de nos enxergar como médicos, viramos os temidos “administradores”, aqueles que dizem não. Falta a percepção que para o paciente dele entrar em um hospital e fazer a cirurgia que é o seu ofício, milhares de coisas deverão acontecer, como a compra de equipamentos e o seu credenciamento, treinamento de pessoal (enfermeiras, nutricionistas, farmacêuticos, engenheiros clínicos...), alvarás, vigilância, glosas de contas, fornecedores ...

Nessa hora, mudamos mais uma vez, viramos os “negociadores”. No início, as negociações eram muito difíceis, o desconhecimento do outro lado e a desconfiança reinavam, negociações costumavam durar até nove meses, quando se chegava a um acordo, já estava defasado. Passamos a conhecer o lado “plano de saúde “da cooperativa, lutando por preços mais baixos, sem muitas vezes se preocupar com a qualidade, enfim, se discutia preços e não valores.

Com o passar do tempo, passamos a entender que do outro lado da mesa não existiam monstros gananciosos que queriam economizar a qualquer custo, mas médicos, como nós, em um sistema altamente regulamentado e judicializado, com custos crescentes e que em algum momento, seja pelo envelhecimento da população, seja pela incorporação de novas tecnologias se tornarão impagáveis. Nessa hora, a preocupação passa a ser a sustentabilidade do sistema. A lógica é simples: se eles quebrarem, seremos os próximos, temos de cuidar de um todo, não mais apenas dos nossos hospitais.

Para piorar tudo, as coisas começam a mudar muito rápido no nosso entorno. Surgem empresas de capital aberto, com dinheiro de bolsa de valores, que trabalham somente consigo mesmas e enxergam o médico apenas como mais um empregado, pagando valores aviltantes e apostando que com a enxurrada de novos profissionais jogados todos os anos no mercado não faltará alguém disposto a fazer mais por menos. Dane-se a qualidade, a relação médico/paciente, a autonomia do profissional liberal, o que importa são apenas bons números para gerar polpudos dividendos nas bolsas de valores.

Nesse momento, volto a 2003 e vejo mais do que nunca a nossa Unimed como o porto seguro, que pode nos proteger desses gafanhotos. Não sozinha, mas junto com os cooperados e com a sua rede prestadora. Não somos diferentes como o incauto imagina, somos todos médicos cooperados com as mesmas necessidades, dores e preocupações. Desse trabalho, vem o nosso sustento, somos farinha do mesmo saco, e quem afirma o contrário quer nos dividir com propósitos obscuros.

Para que essa união ocorra, princípios básicos devem ser cumpridos:

O prestador precisa se profissionalizar, investir em gestão, buscar a todo custo a segurança do paciente. Precisa ter indicadores de resultados clínicos, eficiência, evitar desperdícios e coibir as fraudes.

O colega tem de entender que a cooperativa é dele. Não é um plano de saúde que ele pagou uma luva para entrar. Tem que entender que as pessoas encasteladas no décimo andar da nossa sede trabalham para ele e não o contrário. Precisa se inteirar sobre os números, ir às reuniões, questionar o que achar pertinente, mas também entender que não precisa de 48 exames para diagnosticar uma dengue, que não deve pedir uma tomografia computadorizada e uma ressonância na mesma consulta ou manter seus pacientes internados além do necessário por pura conveniência.

À diretoria da Unimed, que venha a percepção que não são necessários 11 diretores para fazer uma cooperativa ou empresa funcionar; que a profissionalização que ocorreu em outras grandes singulares, já passou da hora de acontecer aqui; que o dono, o cooperado, não pode nem deve esperar dias ou semanas para ser recebido e que precisamos de menos festas, viagens e eventos e mais foco no negócio, produtos competitivos e pactuados para se fazer frente à nova concorrência; que seja mais cooperativa e menos plano de saúde, melhorando de forma responsável o recebimento do seu dono, o cooperado, e fazendo com que ele se sinta novamente em casa, amparado

   Tenho a plena convicção, que juntos, com espírito desarmado, com transparência e profissionalismo, garantiremos a sustentabilidade de todos os players e a segurança que tanto precisamos.

Haikal Helou é médico e presidente da Associação dos Hospitais Privados de Alta Complexidade do Estado de Goiás